A DIDÁTICA REVOLUCIONÁRIA DA MÚSICA EM BEETHOVEN

04-04-2021


A propósito da efeméride dos 250 anos do seu nascimento e dos 25 anos da presença de Constantin Sandu, pianista e professor, em Portugal.

O erro de Beethoven foi o do Cristóvão Colombo. O navegante queria simplesmente aventurar-se num novo caminho face a um país desconhecido, a Índia antiga; ao tentar, descobriu um novo mundo.(Richard Wagner)

Pensar hoje Beethoven, passados que estão 250 anos do seu nascimento, é o assunto trazido pelo trabalho apurado de Constantin Sandu e expresso neste cd, objeto este a partir do qual podemos afirmar que ficamos, agora, em melhores condições para podermos aceder ao passado, não por este se ter tornado um elemento já adquirido e inquestionável, mas, sobretudo, por constituir a oportunidade de compormos sobre ele uma imagem dialética entre o hoje, o ontem e o amanhã.

É essa a razão pela qual Constantin Sandu, ao interpretar Beethoven, nos permite aceder a esses territórios sonoros, nos quais abundam tesouros inesperados e em abundância, e nos apoia na criação de memória.

Beethoven, no seu desejo antecipador de um futuro outro para os sons, transformou o seu trabalho composicional num acervo de indiscutível valor artístico a ser rececionado e manuseado no mundo e pelo interior das escolas artísticas.

Obviamente, isso é de especial importância porque, quando queremos dar corpo à ideia de que, entre os criadores, sempre houve alguns que procuraram produzir fissuras e pensamentos insituáveis, isso se torna assunto nevrálgico para incentivar, não só a academia, mas sobretudo nela, o alargamento de novos horizontes, sendo estes traduzíveis em gestos técnicos, éticos, estéticos e singulares.

Beethoven assegura-nos, basta prestarmos atenção a este registo, que é possível dar uma outra forma ao tempo.

É num ambiente intelectual de enorme rebeldia que Beethoven desenha sonoramente a sua relação com o tempo. A liberdade que está afeta à sua expressividade condu-lo a uma necessidade de transpor o que nele vivia já instaurado, a atmosfera clássica. Daí que quando ouvimos estas sonatas sentimos nelas uma dupla constatação: o rigor clássico da forma - herdada em Haydn e Mozart - aliada à liberdade emotiva dos seus sons em movimento, que prenunciam o desmantelamento das fronteiras artísticas do seu tempo.

Esta atitude, este inconformismo, faz acelerar a ideia de que está em marcha a conceção de um espírito musical novo, o romântico, que será a posteriori identificado com a marcha do eu, onde tudo acaba por se encontrar.

Não é por acaso que, via Beethoven, podemos constatar o crescimento de um movimento imparável, ainda hoje ele se faz sentir, em direção à emancipação sonora, sendo esse desígnio uma das justificações deste registo discográfico.

Se é a Goethe a quem podemos responsabilizar pela paternidade do romantismo, é a Schiller que devemos a constatação de um movimento oscilatório entre ingenuidade e sentimento. É por aqui, pelo interior deste novo triângulo criador, que Beethoven vai encontrar um modo individual para poder aspirar à infinitude dos sons numa intimidade, digamos aberta, uma singularidade plural que o faz deslocar entre natureza e arte, entre o terrestre e o divino.

Beethoven faz parte desse movimento inicial do romantismo que, advindo do Sturm und Drang, se irá mais tarde espraiar pela Europa fora, onde poetas, pintores e músicos vão ganhar lugar de destaque e que, por isso mesmo, ficará plasmado nos anais da história ocidental como uma visão do mundo centrada no drama da existência humana e que, partindo da singularidade de cada um, se manifesta em ações coletivas de ideias utópicas.

Ainda hoje - eis a emergência de o considerarmos assunto didático de enorme alcance - quando nos abeiramos das características românticas da arte dos sons - constatamos que estão vertidos em nós aspetos particulares desse tempo (o singular, o ideal, o exacerbado, o lírico e o sublime , entre outros) e que revelam o que somos hoje num exigente processo de construção cultural.

Ora, o período romântico, que inclui e projeta a música enquanto arte baseada no tempo, foi um movimento que consegui ladear todas as circunstâncias negativas que o circunscreviam, um tanto tão temerariamente quanto Colombo, por declarar ser, logo no seu deambular inicial, desobediente e capaz de ultrapassar as barreiras impostas.

Beethoven capta muito bem essas irrequietudes românticas e, enquanto observador atento da revolução francesa e ouvinte ainda mais próximo de Goethe e de Schiller, cria na sua música, com particular destaque para a instrumental, muitos momentos de tensão máxima, embora hoje esses momentos, que à época eram inusitados, possam ser compreendidos enquanto manifestações sonoras de consonância inofensiva.

No nosso entender, é essa liberdade que coloca Beethoven como um personagem autêntico no cenário musical do séc. XIX, dando corpo a uma torção criativa - a transposição do clássico para o romântico - e é essa mesma liberdade que Constantin Sandu capta e persegue no uso pleno das suas capacidades interpretativas.

As sonatas ouvidas neste registo vivem exatamente no meio deste dealbar beethoveniano e que se traduzem num je ne sais quoi, tal como diria Jankelevith a propósito do instante musical, e que nos arrastam para a confrontação intensa da vida artística de Beethoven, por produzirem em nós ressonâncias que ficam manifestas no nosso sentir e pensar.

É isso que nos faz contactar diretamente com o inefável sonoro, assunto esse que abunda em todo este trabalho agora realizado e que, por si só, é condição suficiente para confirmar a riqueza pianística exibida.

O romantismo é uma visão do mundo que, no campo da arte, percorrendo todo o séc. XIX do mundo ocidental, pode ser entendido como uma nebulosa cultural heterogénea, que vai do fervor revolucionário ao conservadorismo apaziguador, mas que tende sempre a deslocar-se utopicamente em direção a um futuro melhor.

Isaiah Berlin define-o como um movimento contra-iluminista e destaca nele a sua fé inquebrantável na intuição, na singularidade e numa nova visão sobre cultura e sociedade. Figuras como Hegel, Schelling, Holderlin, entre muitos possíveis, festejam a revolução francesa atrevendo-se a colocar o conceito de liberdade como epicentro matricial para as suas vidas.

Há no romantismo uma consciência antecipadora sobre o mundo e isso dá a Beethoven espaço e tempo para ativar uma maturidade que se vai expressar desde muito cedo numa sensibilidade artística, diríamos hoje numa sensibilidade ecológica, que advém do seu olhar atento às condições relacionais entre o homem e a natureza.

As três sonatas postas em cena são uma combinação única de uma música que se desloca em direção a uma visão peculiarmente romântica da phisis e do nomos.

Se é verdade que Beethoven não desperdiça a oportunidade de enriquecer o acervo patrimonial da música, Constantin Sandu amplia essa mesma oportunidade declarando - aqui passamos todos ao estatuto de recetores qualificados - que os sons advindos da criação beethoveniana são um verdadeiro antídoto contra a barbárie cultural que teima em obscurecer a aura dos objetos artísticos que perduram no tempo.

Este duplo gesto confirma a tese exposta por Constantin Sandu neste disco de que estas sonatas constituem sobretudo uma reserva riquíssima de liberdade sonora a que poderemos aceder, quer em casa, na sala de aula, quer no palco, e refletir sobre os sons e sobre a potência da sua práxis transformadora.

Beethoven e o seu legado, passados que estão 250 do seu nascimento, remetem-nos para a inevitabilidade de um confronto connosco próprios quando nos tornamos capazes de não exigir o restauro do passado, mas sobretudo, sermos capazes de reivindicar as esperanças, agora tardias, que nele estavam contidas.

É dessa sensibilidade romântica revolucionária que, sem reservas, podemos aspirar ao contactarmos com este registo.

Se, por cultura entendermos a maneira particular com que nos relacionamos com o ausente, e se sobrepusermos à efeméride beethoveniana os 25 anos de trabalho artístico e pedagógico de Constantin Sandu em Portugal, com particular destaque para o seu trabalho na ESMAE, podemos considerar este registo um verdadeiro ato de cultura e um momento de singularidade inusitada.

Não será difícil de escrutinar as opções do repertório escolhido por Constantin Sandu para este cd. Estamos perante matéria sonora que expõe claramente o pensamento e o gesto criativo do compositor e isso facilita muito a exposição dos preceitos artísticos daquele tempo e, por razões óbvias, promove a transformação do conhecimento que vamos adquirindo no tempo.

São estas as pistas seguras de um caminho que tem vindo a ser percorrido, desde há 25 anos, pelo passo certo, humilde e abnegado de Constantin Sandu. São as suas mãos e pensamento que nos asseguram que os caminhos da arte são insondáveis.

Este registo discográfico dedicado a Beethoven não pertence ao mundo da necessidade. Chega-nos vindo do universo da liberdade que muito justamente Sandu conseguiu por lhe ter dedicado uma vida inteira de trabalho. 

Estes valores não são apenas preciosos no mundo académico, mas também, no enriquecimento cultural que dele nos chega por nos permitir a todos ampliar a vida que levamos.

É exatamente o risco que corremos quando instalamos este Beethoven em nós.

Eis uma promessa, em forma de disco, de liberdade que nos cabe por inteiro assumir.

A cometermos um erro, esse que seja em forma de liberdade.

Mário Azevedo ESMAE OUT 2020


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